O MÊS, me lembro, era junho. Um frio de tremer. O ano deve ter sido nos fins da década de 60, lá pra 69/70. Na verdade não afirmo data certa, pois não registrei o ocorrido.
Eu estava em minha casa, quando o telefone tocou.
Sim, já tínhamos telefones instalados nas nossas residências em Vazante, graças ao empenho do Prefeito, Gustavo Solis Rosa, exatamente quem estava me ligando naquela manhã.
Imaginei ser alguma coisa ligada a Prefeitura, pois naqueles bons tempos, além de Vereador à Câmara Municipal de Vazante, eu era o Chefe do Serviço de Educação da municipalidade. O que corresponde hoje ao cargo de Secretário da Educação.
Se podia haver essa acumulação de Cargos? Sim.
Após uma consulta ao Tribunal de Contas do Estado, tomamos ciência de que podia, mesmo porque, naqueles tempos a função de Vereador era sem qualquer remuneração. Era, sim, um trabalho a bem dizer voluntário. Me orgulho disso.
No entanto, o telefonema não tinha ligação nenhuma com as nossas funções, de Prefeito e Funcionário.
GUSTAVO tinha um amigo de longas datas, aliás dos tempos de ambos jovens, o Pedro Fernandes Caixeta, mais conhecido como Pedro Tonico. Como referência, era irmão do Hilário Fernandes Caixeta, da Luzia do Adolfo, da Mirtes do Sinval Rosa e da Balá do João Mendonça. Esses residiam em Vazante, pois tinham outros irmãos, que residiam em Lagamar.
Naquele momento o Gustavo estava me convocando para uma missão muito importante e muito significativa para ele, Gustavo e principalmente para o seu amigo, Pedro Tonico, cuja missão tinha a ver com este.
Como tinha pressa, me ajeitei logo e fui pra sua casa, que era bem próxima à minha, pois a missão requeria urgência. Me orientou que levasse um calção de banho.
QUANDO lá cheguei, já estavam o Sinval Rosa e o João Alfeu. Daí, fiquei sabendo que passaríamos na casa do Seu Moço (Mário Moreira), que já nos aguardava e rumaríamos para a fazenda do Pedro Tonico, na região do encontro dos rios do Claro e Januária, onde forma um dos braços do Rio Escuro, o Escurinho.
A princípio imaginei que iríamos numa pescaria, pois todos, menos eu, eram pescadores inveterados. Mas durante o percurso, o Gustava me pôs a par do objetivo daquela missão.
O PEDRO TONICO tinha adquirido uma propriedade situada entre os rios do Claro e o Januária, há cerca de uns cinquenta quilômetros de Vazante. Mesmo não tendo construído nenhuma benfeitoria na área, além de um ranchão de roça – era grande, para servir de morada e depósito de cereais, adubos, etc. -, ele abriu uma lavoura de arroz, onde deu início ao uso comercial da propriedade.
Para fazer face às despesas da lavoura de arroz, o Pedro contraiu um financiamento junto ao Banco do Brasil, agência de Paracatu, que seria paga a avença com o produto da lavoura.
A safra foi boa, o sitiante conseguiu uma boa colheita e vendeu o produto para um cerealista da região. Era questão de tempo quitar a dívida junto ao Banco e fazer algumas benfeitorias com o restante do dinheiro.
APÓS a venda e a entrega do arroz, veio na cidade para receber o dinheiro e depois ir para Paracatu, onde localizava a agência bancária, sua credora.
Naquele tempo não havia essas transações bancárias de hoje. Os pagamentos, geralmente eram em espécie, como seriam os subsequentes. O dinheiro passava de mão em mão, até encontrar alguém que o depositasse em algum banco.
CONTINUOU o relato:
O valor, que não era pouca coisa, em cédulas que foram alojadas numa capanga, dessas de pano grosso de algodão, tecido no tear doméstico, com uma alça resistente, para ser carregada pendente aos ombros.
EMBARCOU na jardineira, que passava próximo a sua propriedade, mas não seguiu direto para Paracatu, pois tinha de passar em casa e seguiria no dia seguinte.
PARA chegar na morada, o rancho já mencionado, o Pedro tinha de transpor o Rio do Claro. Normalmente no mês de junho, o Rio ainda tinha bastante água, portanto não dava pé. Por isso tinha de utilizar de uma pinguela improvisada bem debaixo dos galhos de uma enorme árvore de jenipapeiro. Pedro Tonico já se acostumara com aquela transposição e os seus balanços.
Quando estava no meio da pinguela, o inesperado aconteceu. A alça da capanga, com o dinheiro, que a sustentava no seu ombro, rompeu e o Pedro só ouviu o “tibum” do embornal batendo no meio do rio e sumindo na água…
– Senhora da Lapa! – exclamou alto o pobre do homem.
Ele nada pode fazer, pois não sabia nadar, como também sabia que ali naquele local o rio era bem profundo.
Não teve outra alternativa, voltou a pé, ganhando a estrada rodageira, na expectativa de pegar uma carona, o que não era fácil, pois naquele tempo poucos eram os automóveis que trafegavam pela região.
O CERTO é que o Pedro chegou na casa do Gustavo e relatou todo o sucedido, na esperança de que o amigo pudesse ajudá-lo a recuperar o seu dinheiro.
E, ASSIM, chegamos em Vazamór, onde o Zé Cambrona e um outro rapaz, que não me lembro o seu nome, com fama de bom mergulhador, aceitaram o convite e pularam na carroceria da camionete.
Lá CHEGANDO, o Pedro mostrou detalhadamente o local onde a capanga caiu. Relatou que além do dinheiro tinha dentro dela um queijo e um pouco de feijão. Deve de ter sido esse o motivo da alça da capanga não suportar o peso e arrebentar.
A corredeira era bem forte. O Sinval, que já tinha bebericado uns dois bons goles da cachaça, o que, aliás, todos dela tiveram de fazer uso, pois o frio era intenso, caiu n’água e mediu a profundidade, submergindo em pé com as duas mãos pra cima e o rio o cobriu assim mesmo.
Nós todos o acompanhamos e pusemos a mergulhar, palmeando o fundo do rio, em busca da preciosa capanga.
O Pedro Tonico foi o único que não entrou na água, pois como já foi dito, não sabia nadar. Ficava nas barrancas do rio, carregando as garrafas de cachaça, servindo a quem o solicitasse e, por certo rogando a Deus pedindo que encontrássemos o seu dinheiro.
E, ASSIM, foi o dia todo. Da pinguela pra baixo, até onde demos conta, foi vasculhado palmo a palmo, sem nada encontrar.
Lá pras cinco da tarde, quando o sol já começava a se pôr, o que é normal nesse mês, todos já entanguidos de tanto frio, saíram da água, já querendo ganhar o rumo de casa.
O Pedro ali, se fazendo de forte, acompanhava tudo. Mas todos nós sabíamos o que se passava na cabeça de um homem honesto, cumpridor dos seus compromissos…
O Gustavo também não conseguiu dissimular o seu descontentamento com o sofrimento do amigo. Sempre de cenho cerrado, sem aquele entusiasmo, que era próprio dele, ruminava a decepção do dia trabalhado.
DECEPCIONADOS, retornamos pra casa, mas com promessa firme de estar ali dentro daquele rio no outro dia.
FOI o que fizemos. Lá pras nove da manhã já estávamos todos mergulhados dentro do rio, seguindo as orientações do Seu Moço, conhecedor das manhas dos rios nos seus bojos e redemoinhos. Até que a tarde chegou novamente. E, nada…
NÃO suportando mais o frio, lá pelas cinco da tarde, novamente saímos da água e rodeamos uma fogueira improvisada, buscando recompor a friagem das mãos, que já chegavam a azular as unhas de tanto frio.
O SINVAL ROSA, que era cunhado do Pedro, foi o único a permanecer dentro do rio, desobedecendo o chamado da maioria para irmos embora e não querendo mostrar desânimo.
Ele atinou mergulhar bem debaixo da pinguela, onde a capanga com o dinheiro e um queijo, que o Pedro havia ganhado da sua irmã, além de um pouco de feijão, havia caído.
Não dava a menor atenção aos clamores dos companheiros, quando num último mergulho, retornou á superfície, deixando ver uma outra feição alegre, elevando a mão direita sobre as águas, mostrou a todos nós a tão sonhada capanga com o dinheiro…
FOI a maior alegria. Todos que tinham os seus revólveres deram saraivada de tiros pra cima e abraçados com o Pedro Tonico, pulamos igual crianças, enquanto ele deixava as lágrimas de alegria escorrer pelo seu rosto sofrido, o que, aliás, aconteceu com todos nós.
PASSAMOS pro outro lado do rio e fomos pro ranchão, onde o Eujácio estava preparando um dourado com arroz, para o nosso jantar. Nesse ínterim auxiliamos o Pedro a separar nota por nota, todas molhadas, evidentemente, e grudadas umas nas outras. Não estragamos nenhuma das setecentas cédulas contidas dentro do embornal.
O EUJÁCIO, que não tinha participado da nossa comemoração, se aproximou, olhou aquele monte de dinheiro misturado com o feijão inchado e já mal cheiroso, somente indagou:
– E, O QUEIJO???
FOI motivo para muitas risadas, enquanto a cachacinha corria de mão em mão. O queijo tinha sido lançado dentro do rio, pois inchou, quase estourando a capanga.
Mas fomos justos. Unanimemente admitimos que fora ele, com o seu peso adicional que salvou aquele dinheiro de rodar rio abaixo e nunca ser encontrado…
Nota autor:
(Entre todos os personagens envolvidos nesse episódio verídico, somente esse articulista se encontra entre os vivos).
“COMO SEMPRE DIGO, ALI ESTEVE O DEDO DE DEUS…”